Cipriano - O Tarólogo


Dora chega para a sua primeira consulta com o tarólogo Cipriano, usando seu vestido básico, azul e sem mangas, e um chapéu branco medonho que ganhou da madrinha querida quando essa veio de Paris. Abriu a porta um homem grande e robusto (quase gordo), de pele morena e ar solene, olhar duro, e que bem lembrava o professor Snape do Harry Potter, só não era cabeludo. Tinha têmporas grisalhas; nada simpático num primeiro momento. Discretamente ele reparou no chapéu da moça, era quase um chapéu coco, branco com um adorno que se pretendia uma flor envolta num laço, mas lembrava mesmo era uma alça... Enfim ela parecia estar com um daqueles pinicos laqueados na cabeça. Daqueles que ficavam debaixo da cama da avó de Cipriano. E ela parecia meio sem jeito usando ele, que não combinava mesmo com sua elegância altiva. Cipriano disfarçou o olhar, identificaram-se e ele a convidou para entrar. Sentaram numa mesa de madeira bem simples numa sala de muitos livros em prateleiras altas. Em cima da mesa tinha só um bloco de notas, um bem usado baralho de tarot Rider-Waite, e um pires de porcelana vermelha, no qual ele acendeu um tablete de um incenso maravilhoso. Ele então perguntou: 

- O que veio saber exatamente?

- O senhor não vai jogar para mim? – Perguntou ela surpresa e meio desconcertada.

- Depois - Falou ele -  Mas agora preciso saber.

E então ela disse:
- Eu vim aqui mesmo foi para entender por que o amor não aconteceu para mim, consegui todo o resto que desejei, me considero uma guerreira, mas essa parte da minha vida é vazia de realizações! Eu queria entender isso, o senhor pode me ajudar?

Ele pegou o maço de cartas na mesa e começou a embaralhá-las verticalmente, então para surpresa de Dora, acostumada com consultas à cartomantes, ele mesmo corta uma vez o maço, o junta novamente e ele mesmo tira a última carta, e mostra a ela sem com que visse antes.

- O que você vê? Perguntou.

- Vejo três espadas atravessando um coração, e um céu em que está chovendo.

- Hum... Resmungou ele.

- Esse coração são os seus sonhos de amor apunhalados pelos seus desejos cerebrais. Vejo nessas três espadas também as três coisas que a motivaram matar seus sonhos... A vida acadêmica, a sua carreira e as suas bandeiras... Esse céu que chove é sua angústia a se indagar.

A mulher delicada de chapéu esquisito era uma Mestre em direito, com especialização em direito civil, e com forte atuação na defesa do direito das minorias. Embora não parecesse já tinha quarenta e seis anos, e olhava para Cipriano com espanto. E ele continuou:

- Essas espadas são os pensamentos e conceitos que aprisionaram as expressões do seu coração, sua paixão e a ousadia de se entregar, se mostrar sem defesas. E sobre isso que falou de ser uma “guerreira”... O naipe de espadas – Disse ele mostrando novamente a carta a ela – corresponde a classe dos militares da Idade Média... De punhos cerrados é difícil dar abraços, e receber carinho... Seja mais coração! Sinto que tem muito amor dentro dele...

Ela continuava olhando-o com um ar de espanto, e acenando positivamente com a cabeça enquanto ensaiava um sorriso.

Ele devolveu a carta ao maço, e voltando a embaralhar suspirou – Então vamos começar! – Ao que ela interrompeu colocando a mão sobre a mesa:

- Não, sério, era tudo o que eu precisava ouvir! Quanto lhe devo? – Perguntou ela retoricamente, pois sabia o preço da sessão 
– Nada! -  Disse - Não fiz todo meu trabalho... 
– Ela respondeu – O senhor fez mais do que pode imaginar...!

Deixou o dinheiro sobre a mesa e foi se levantando em direção a porta. Ele a acompanhou.

- Uma última pergunta – Embora eles já estivessem longe da mesa e das cartas de tarot – O senhor acha que eu conseguirei? Digo, conseguirei ousar e ser mais coração?

- Bem... – Pausou ele – Você conseguiu sair pra rua com esse chapéu, não foi?

Eles se olharam por um instante antes de caírem numa gargalhada quase histérica...!

Surpreendentemente ela saltou pra frente num abraço, e mais surpreendentemente ainda ele foi receptivo, quase paternal. Despediram-se, ela saiu saltitante em direção a rua, quase orgulhosa do seu chapéu. Acenaram um para o outro de longe, em lados diferentes da porta.

Nunca mais se viram outra vez!

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